Leitura Partilhada
terça-feira, janeiro 08, 2008
  Realidade Cruel
Um romance de grande rigor literário em volta de um tema que se encontra extremamente dissecado e esgotado noutros meios de expressão: no cinema, nas bandas desenhadas, na própria indústria de brinquedos. Estamos a falar da vida no oeste americano de meados do século XIX, vulgarmente etiquetado como paisagem de «westerns». O leitor, logo às primeiras páginas, entra num universo que não encaixa de modo algum nos cânones de assimilação dos típicos cenários de «western», por um lado, pela soberba qualidade de escrita, bem cuidada no detalhe e riqueza de descrição de cenários e do desenvolvimento da acção, por outro, por uma violência terrível que afastará as pessoas mais sensíveis e mesmo porventura as menos sensíveis. A violência não é gratuita, como se poderia depreender que tal fosse normal num típico «western», é uma violência que se sente real e de descrição necessária como substância essencial à construção deste romance que descreve o verdadeiro horror vivido nesses tempos, em todos os aspectos da existência humana, onde uma vida não valia absolutamente nada e onde a morte e a tortura eram vividos de uma forma completamente resignada, porque constantemente presente, e onde tudo o que de mau o ser humano tem se revelava nas suas mais bárbaras expressões.

A narrativa centra-se em volta de um rapaz, que ainda novo começa a vaguear sozinho pelo Oeste, sofrendo e assistindo a episódios horripilantes, até que é recrutado por um bando de caçadores de escalpes, e a partir daí participa numa história de monstruosos e inumanos massacres legais (?) e ilegais, sem qualquer regra de conduta ou respeito por qualquer tipo de ser vivo. Neste bando participa outro personagem, a verdadeira figura central deste romance, conhecido como o «Juiz», que é o expoente de todo o cenário de violência do mesmo. Homem com uma enorme experiência de vida, e que já vagueou por todo o mundo, com imensos conhecimentos, inclusivamente académicos, fluente em imensas línguas, é um filósofo que advoga a apologia da regeneração da civilização pela violência, fazendo regularmente dissertações ou observações profundas sobre o verdadeiro sentido da vida nas quais ninguém acredita, apelidando-o de louco, mas reconhecendo a imensa sabedoria que o Juiz demonstra, não pela teoria, mas pela sua prática, revelando o Juiz ser o melhor dançarino num palco da vida em que toda a gente, em determinado ponto, se recusa a dançar, e por isso morre, donde poucos são os iluminados que como ele sabem como deve ser vivida a existência. Personagem terrível e macabra, capaz das maiores atrocidades e ao mesmo tempo dos melhores gestos humanos na maior das delicadezas, revela um homem que conhece todos os extremos do ser, e que, como que sem moral ou consciência (que ele facilmente revoga numa das suas dissertações) age da forma que bem lhe apraz em qualquer momento. Com um registo num caderno de tudo o que de original vai encontrando, destruindo as provas logo a seguir, constrói a realidade sob a assunção de que tudo aquilo que não viu não existe, e por isso é um homem completo sem qualquer necessidade de nada mais, apenas de viver o que cada dia lhe oferece, no tal palco da vida em que poucos sabem verdadeiramente dançar.

McCarthy, além do já falado superior rigor de escrita que demonstra, revela também um conhecimento profundo do território do Oeste americano, com todas as descrições detalhadas das centenas de cenários que os personagens do romance atravessam, além de um grande conhecimento da história real, em termos de factos, ocorridos nesse período, servindo o livro também como documentário fabuloso e único do Oeste Americano. Mas, acima de tudo, todo o retrato humano (?) da regeneração pela violência, cujos sobreviventes deram origem aos cidadãos americanos actuais, pela forma superior em que é escrito, descrito, e interpretado (principalmente pelo Juiz), faz deste livro uma obra-prima imprescindível a qualquer bom leitor, afastando o rótulo de «western» (com as conotações banais que normalmente os envolvem) que o título pode sugerir.

Como última nota, é dificil não fazer um paralelismo com «As Vinhas da Ira», de Steinbeck, cuja acção também se passa em cenário semelhante mas 50 anos depois, onde veremos que os sobreviventes continuam com a violência bem aguçada, embora mais controlada e «civilizada», no completo desrespeito pelos mais básicos direitos de vida do próximo. A verdadeira esperança do homem não vive em ambientes hostis, que mata todos os seus rebentos à nascença.

Paulo Neves da Silva, opinião sobre o "Meridiano de Sangue" publicada no Citador

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