Leitura Partilhada
terça-feira, agosto 31, 2004
  28 de Novembro
1928.
E assim passam os dias, e às vezes pergunto-me se não estarei tão hipnotizada pela vida como uma criança por um globo de prata; e se isto é viver. É muito rápido, é brilhante, entusiasma. Mas é superficial talvez. Gostava de pegar no globo com as minhas mãos, tocá-lo devagar, senti-lo redondo, liso, pesado. E segurá-lo depois dia após dia. Acho que vou ler Proust. De trás para a frente e da frente para trás.

Virginia Woolf, Diário
 
  Fragmento atribuido a Metódio de Tessalónica
When we read, it is not ours to absorb all that is written. Our thoughts are jealous and they constantly black out the thoughts of others, for there is not room enough in us for two essences at one time

Joana
 
 
- Já li o livro que me deste.
- E não me dizias nada! Então, gostaste?
- Adorei. Também o chegaste a ler?
- (prolongando o sorriso de prazer) Gostei bastante. E tu adoraste porquê?


Mas ele sabe porquê. Só me quer ouvir dizê-lo.



Leitora
 
 
"Humanos sede humanos"

Voltaire




Troti
 
  Holocausto
A morte gratuita
perversa
intencional
a morte adversa
prematura
a morte obscura
anónima
cruel
a morte absurda
do inocente
do ímpio
do crente
a morte desumana
do homem
perdido
impotente
na força desigual.


Troti
 
segunda-feira, agosto 30, 2004
 
No sítio onde morava não havia muitas crianças. Por isso, acabei por ir um ano mais cedo para a escola; mas ainda assim sobravam as noites, os fins de semana, e as longas férias em que não viajava. Adorava ver televisão, mas não havia tantos desenhos animados como agora; o resto do tempo passava-o a ler. Lia tudo: Júlio Dinis, Eça, livros da colecção Patrícia, livros da Enid Blyton... Acho que acabei por ler muitas coisas antes antes de as viver; e que, ao vivê-las, não me podia deixar de reportar ao que tinha lido sobre elas. Para mim, os amores trágicos não podem senão terminar com uma febre cerebral (ver A Dama das Camélias, ou O Primo Basílio), sem isso, não são amores verdadeiramente trágicos. Foi estranhíssimo descobrir que a vida só em parte copiava os livros; mas descobri igualmente que não era necessário avaliar o que eu vivia pelo que eles descreviam. Ainda assim, há livros que me assobram, nos quais descubro uma vida que, na realidade, me escapa.
nastenka-d
 
  Redenção
O mistério que é a personagem de Hanna faz-nos reflectir sobre a eventual ambiguidade de comportamentos de tantos outros compatriotas e de tantos outros países (que, com honrosas excepções, não se incomodaram grandemente com a sua população judaica). De facto, porquê apenas a Alemanha? Porque não, também, a França, a ex-URSS, a Polónia, a Roménia, a Checoslováquia, a Hungria, a Itália, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda, a Noruega, a Jugoslávia, a Bulgária, ...? Qual foi o país invadido/invasor que fez questão de defender os seus judeus?

Que terão eles pensado? Que noção de culpabilidade terão eles tido quando tudo acabou? Será que algum dia se perdoaram? Será que algum dia se questionaram? Será que algum dia conseguirão reconciliar-se com a memória?

Espero que todos tenham vivido amplas tentativas de redenção.


(the International Monument to the victims who died in the Auschwitz II camp, known as Birkenau)

MAY THIS PLACE WHERE THE NAZIS ASSASSINATED A MILLION AND A HALF MEN, WOMEN AND CHILDREN, A MAJORITY OF THEM JEWS FROM DIVERSE EUROPEAN COUNTRIES, BE FOREVER FOR MANKIND A CRY OF DESPAIR AND OF WARNING.

azuki
 
  Ler toda a vida
Ler.
Ler mais.
Ler sempre.
Perder-me nas horas que passam ao sabor da emoção.
Descobrir tudo na vida, realidade, fantasia, morte, origem, coração.
Viver com ilusão.


Troti
 
 
"- Ela aprendeu a ler consigo.
...
- Ela desejava tanto que lhe escrevesse...Porque é que nunca lhe escreveu?
Voltei a ficar calado. Não conseguiria falar, apenas conseguiria balbuciar e chorar.

...

Nos primeiros tempos depois da morte da Hanna, as antigas dúvidas continuaram a atormentar-me: se a tinha sonegado e atraiçoado, se ficara em dívida para com ela, se me tornara culpado por a ter amado, o modo como me livrei dela e como deveria tê-lo feito. Por vezes perguntava-me se era responsável pela sua morte. E por vezes enfurecia-me com ela e com tudo o que me fizera. Até que o ódio perdeu força e as dúvidas importancia. Não importa o que fiz e o que não fiz e o que ela me fez - tudo isso se tornou a minha vida.
A intenção de escrever a história de Hanna e a minha surgiu pouco depois da sua morte...
De início, queria escrever a nossa história para me libertar dela....
Há já alguns anos que deixei esta história em paz. Fiz as pazes com ela...
Contudo, quando estou magoado reaparecem as mágoas antigas; quando me sinto culpado, volta a culpabilidade de então; e no desejo e na nostalgia de hoje, esconde-se o desejo e a nostalgia de ontem. As camadas da nossa vida repousam tão perto umas das outras que no presente adivinhamos sempre o passado, que não está posto de parte e acabado, mas presente e vivido. "


A força de uma vivência pessoal é inultrapassável. Quer queiramos quer não, seremos marcados para sempre pelos acontecimentos que vivemos. Não é possível ficar indemne. Cada percurso individual contém as alegrias e as dores mescladas numa amálgama de emoções e não se podem retirar umas e deixar outras. Elas irão acompanhar-nos juntas na curva da vida e na luta interior de cada um para conseguir sobreviver inteiro.


Troti

 
domingo, agosto 29, 2004
 
"- Antes do processo, nunca pensaste naquilo que foi falado durante o processo? Quero dizer, nunca pensaste naquilo quando estávamos juntos, quando eu te lia em voz alta?
- Isso preocupa-te muito?
Mas ela não esperou pela resposta.
- Sempre tive a sensação de que ninguém me compreende, que ninguém sabe quem eu sou e o que me levou a fazer isto ou aquilo. E, sabes, quando ninguém te compreende, então ninguém pode exigir-te nada. Só os mortos é que podem. Eles compreendem.



...

... acusava a Hanna e achava que havia sido fácil e simples o modo como se escapara da sua culpa. Deixar apenas aos mortos o direito de clamar por justiça, reduzir a culpa e a penitência a um sono inquieto e a alguns pesadelos - então, e os vivos? Mas, na verdade, eu não estava a pensar nos vivos, mas em mim. Não tinha eu também o direito de lhe exigir justiça? Então e eu?

Troti
 
 
- Não quero compreender, não sou crítico. Não me interesso pelos escritores por causa deles mas por mim.
- Então porque lês?
- Um pouco por prazer, porque é um hábito e eu sinto-me tão inquieto quando não leio como quando não fumo; e outro pouco para me conhecer. Quando leio um livro, tenho a impressão de que o faço apenas com os olhos, mas às vezes encontro uma passagem, talvez uma única frase, que tem sentido para mim, e que se torna parte de mim mesmo. Tirei do livro tudo quanto me era útil e nada mais poderei esperar dele, ainda que torne a lê-lo uma dúzia de vezes. Tenho a impressão de que nós somos como um botão em flor: a maior parte das nossas leituras desliza sobre nós sem produzir o menor efeito, mas certas coisas, que têm para nós um sentido especial, abrem uma pétala: uma a uma, as pétalas desabrocham, e por fim surge a flor.
W. Somerset Maugham, Servidão Humana

nastenka-d
 
sábado, agosto 28, 2004
  Leitura VI
"O que realmente importa na literatura é concerteza o individual, o sabor ou a cor de um sofrimento humano em particular "

Harold Bloom


Troti
 
 
Quando era miúda lia tudo sem qualquer distinção.
A minha mãe costumava comprar um livro para mim e para a minha irmã (todas as semanas? todos os meses?), e saía propositadamente mais cedo do trabalho nesses dias para o fazer. Na vila onde eu morava não havia livrarias, apenas uma papelaria onde os poucos volumes ganhavam pó nas prateleiras atrás do balcão. Na cidade mais perto havia duas livrarias, e era numa dessas que a minha mãe se abastecia. Ela conta que nos dias em que chegava a casa com os livros nós praticamente lhos arrancávamos das mãos e desaparecíamos. Lembro-me de me ralharem por não responder quando me chamavam, e de como tudo o que vivia nos livros me parecia delicioso. Por falar nisso, alguém se lembra das sanduíches dos livros d'Os Cinco?
nastenka-d
 
  diário impossível
9

Permitam-me, livros adorados, que hoje recorde Pessoa:

Que bom ter um livro para ler e não o fazer...


Mas não me incomoda nada esta loucura. Estou a viver intensamente, e hoje não poderei parar para ler. Voltarei em breve, claro!


leitora
 
sexta-feira, agosto 27, 2004
 
"Agora estava sentado ao lado de Hanna e cheirava-me a velha.
...
Sentei-me mais perto dela. Tinha notado que a desiludira antes, e queria que ela esquecesse isso.
_ Estou contente que vás ser libertada.
_ Sim?
Contei-lhe da casa e do trabalho que encontrara para ela, das ofertas culturais e sociais naquele quarteirão da cidade, da Biblioteca municipal.
- Lês muito?
- Mais ou menos. Ouvir ler é muito mais bonito.
Ela olhou-me.
- Agora isso acabou, não é verdade?
- Por que é que iria acbar?
Mas não me via a gravar mais cassetes para ela, nem a ir visitá-la para tornar a ler-lhe em voz alta.
...
Eu concedera-lhe um pequeno nicho, exactamente um nicho, que era importante para mim, que me dava algo e pelo qual eu fazia alguma coisa, mas não um lugar na minha vida.
E por que razão deveria eu conceder-lhe um lugar na minha vida? Revoltei-me contra a má consciência que resultava de pensar que a reduzi de maneira a ocupar apenas um pequeno nicho."


Onde estava a Hanna pessoa? Será que ele pensava nela como uma pessoa?


Troti
 
  diário impossível
8

Tenho um livro que sorri aqui ao meu lado. Os livros conhecem todos os truques de sedução. Este sabe que é do meu autor preferido, e por isso mal se esforça. Olha-me, apenas. A lapiseira marca o capítulo em que vou prosseguir a leitura. Não tardará quase nada...


leitora
 
 
Um soldado é obrigado a cumprir ordens, por mais horrendas que sejam.

obrigados a obedecer = desobrigados a ter um sentido ético dos comportamentos????

azuki
 
  diário impossível
7

Chamam literatura de verão a livros mais leves. Não concordo. Para férias levo livros mais exigentes, para aproveitar a especial disponibilidade mental, a limpeza de olhar.

leitora
 
quinta-feira, agosto 26, 2004
  Leitura V
"Uma vista de olhos a um livro e ouves a voz de outra pessoa, talvez algúem que já morreu 1000 anos atrás. Ler é viajar através do tempo "

Carl Sagan


Troti
 
  O leitor de Nietzsche
Dos arquivos do Silêncio

 
Este livro pertence àqueles leitores que são menos numerosos. Talvez até ainda não exista nenhum deles. Podem ser os que compreendem o meu Zaratustra: como me seria possível confundir-me com esses a quem, já hoje, se presta ouvidos? Só o depois de amanhã me pertence. Há alguns homens que nascem postumamente.As condições em que a gente me entende e, depois, me entende necessariamente, conheço-as eu até com demasiada precisão. Tem de ser-se íntegro nas coisas do espírito até à dureza, só para suportar a minha seriedade, a minha paixão. Há que estar acostumado a viver em montanhas... a ver abaixo de si o deplorável mexerico da política e do egoísmo dos povos próprio da nossa época. É preciso a pessoa ter-se tornado indiferente, não devendo perguntar nunca se a verdade lhe é útil ou se vem a ser o seu fadário...
Uma predilecção enérgica por perguntas, para as quais, hoje, ninguém tem coragem; a coragem para o que é proibido; a predestinação para o labirinto. Uma nova consciência para verdades que, até agora, permaneceram mudas. E a vontade de conseguir uma economia de grande estilo, mantendo junto um do outro a sua energia e o seu entusiasmo... O respeito por si, o amor a si, a liberdade incondicional perante si próprio...Pois bem! Só esses são os meus leitores, os meus leitores adequados, os meus leitores predestinados: que importa o resto? O resto é apenas a humanidade. Há que ser superior à humanidade pela energia, pela elevação da alma... pelo desprezo...

Friedrich Nietzsche
Prefácio para O Anticristo
Publicado por dolphin.s em julho 17, 2003

 
Leitora
 
  Leis Anti-Semitas
... os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos autocarros; os judeus eram proibidos de andar de carros, mesmo que fossem carros deles; os judeus deveriam fazer suas compras entre as três e cinco horas da tarde; os judeus só deveriam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de comparecer a teatros, cinemas ou qualquer outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de frequentar piscinas, campos de ténis, campos de hóquei ou qualquer outro campo de atletismo; os judeus eram proibidos de ficar nos seus jardins ou nos dos seus amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de visitar casas de cristãos; os judeus deveriam frequentar escolas judias. (Diário de Anne Frank)

azuki
 
quarta-feira, agosto 25, 2004
 
"Não queria visitá-la, exactamente porque ela me era, de um modo tão natural, próxima e afastada ao mesmo tempo. Tinha a sensação de que ela poderia ser o que era para mim apenas à distância real. Tinha medo que o pequeno, leve e íntimo mundo dos cumprimentos e cassetes fosse demasdiado artificial e demasiado frágil para aguentar uma proximidade real. Como poderíamos encontrar-nos cara a cara sem que emergisse tudo o que havia acontecido connosco?"

O passado é muitas vezes um carrasco.


Troti
 
 
A Hanna estava lá, com a arma na mão, é certo. E todos os seus compatriotas que fingiam nada ver e que, calmamente, continuavam a sua vidinha? Porque é que a população não abriu o portão da igreja? Porque é que o País preferiu pensar que era mentira aquilo que entrava pelos olhos dentro?

azuki
 
  diário impossível
6

Ando sempre com um livro atrás de mim. Apesar de saber que não vou ler; não o levo pela esperança de ler algumas páginas. Levo-o para não passar o dia com a sensação de ter esquecido algo em casa pela manhã.

leitora
 
terça-feira, agosto 24, 2004
  Leitura IV
"A leitura que toma a obra pelo que ela é, e, assim, a desembaraça de todo o autor, não consiste em introduzir, no lugar dele, um leitor, uma pessoa fortemente existente, possuidora de uma história, uma profissão, uma religião e até de leitura, que, a partir de tudo isso, começaria, com a outra pessoa que escreveu o livro, um diálogo. A leitura não é uma conversação, ela não discute, não interroga. Jamais pergunta ao livro e, com mais fortes razões, ao autor: "O que foi que você quis dizer exatamente? Que verdade me traz, portanto?" A leitura verdadeira jamais questiona o livro verdadeiro; mas tampouco é submissão ao "texto". Somente o livro não literário se oferece como uma rede solidamente tecida de significações determinadas, como um conjunto de afirmações reais: antes de ser lido por alguém, o livro não literário já foi lido por todos e é essa leitura prévia que lhe assegura uma existência firme. Mas o livro que tem sua existência na arte não tem sua garantia no mundo, e quando é lido, nunca foi lido ainda, só chegando à sua presença de obra no espaço aberto por essa leitura única, cada vez a primeira e cada vez a única.Daí a estranha liberdade de que a leitura - literária - nos dá o exemplo. Movimento livre, se ela não está submetida, se não se apóia em nada que lhe esteja presente. O livro aí está, sem dúvida, não só a sua realidade de papel e de impressão, mas também a sua natureza de livro, esse tecido de significações estáveis, essa afirmação que ele deve a uma linguagem preestabelecida, esse cercado, também, que forma em redor dele a comunidade de todos os leitores, entre os quais, eu que não o li, já me encontro, e esse cercado é ainda o de todos o livros que, como anjos de asas entrelaçadas, velam estreitamente sobre esse volume desconhecido, pois um único livro em perigo ocasiona uma perigosa brecha na biblioteca universal. O livro, portanto, aí está, mas a obra ainda está escondida, ausente talvez radicalmente, dissimulada, em todo o caso, ofuscada pela evidência do livro, por trás da qual aguarda a decisão libertadora, o Lázaro, veni foras.Fazer cair essa pedra parece ser a missão da leitura: torná-la transparente, dissolvê-la pela penetração do olhar que, com ímpeto, vai mais além.(...)

Maurice Blanchot
(in O espaço literário).


Troti
 
  projecção futurista
4

Sigo por caminhos cada vez mais estreitos. Por vezes faço desvios pela mata, entro em territórios que desconheço. Porque me são oferecidos, porque é um autor que me desperta curiosidade. Mas cada vez mais mantenho-me fiel a um género, uma linha de literatura. Escolas, famílias, ...?

Será que virei a ler um só autor, e mais tarde um único livro, vezes sem conta?

leitora

 
 
Quando vivemos cercados de horror, a certa altura, cremos que a regra não pode deixar de ser o horror. Ao longo da vida, Hanna não se apercebeu do que fizera. Ao longo da vida, Hanna não se vislumbrou. E depois veio o seu reflexo nas palavras lidas. E aquela que Hanna fora revelou-se demasiadamente insuportável.

azuki
 
segunda-feira, agosto 23, 2004
 
“Nunca lhe escrevi. Mas continuei sempre a ler-lhe em voz alta.
...
Não me preocupou que a Hanna agora, depois de ter aprendido a ler sozinha, pudesse já não precisar das cassetes, Poderia ler depois. Ler em voz alta era a minha maneira de falar para ela, de falar com ela.”


Ler para Hanna:
Uma necessidade desprovida de afeição?
Uma afeição desprovida de sentimento?


Troti
 
  projecção futurista
3

Que livro vou ler a seguir? Qual me apetece ler, qual quer ser lido com urgência? De que livro tenho andado à procura?

leitora

 
domingo, agosto 22, 2004
  projecção futurista
2

Nunca encontrei o Mundo num livro; cada livro é um mundo, mais ou menos inventado.

leitora

 
 
"No quarto ano da nossa relação, ao mesmo tempo rica e pobre em palavras, chegou um cumprimento:"Miúdo, a última história era particularmente bonita. Obrigada. Hanna".
...
Li o cumprimento e enchi-me de alegria e júbilo. Ela escreve! Ela escreve! Tinha lido tudo o que encontrara durante todos aqueles anos sobre o analfabetismo. Sabia do desamparo do analfabeto perante situações quotidianas como encontrar um caminho, uma morada ou a escolha de um prato num restaurante, do receio com que o analfabeto segue os padrões pré-estabelecidos e as rotinas confirmadas, da energia que consome para ocultar a condição de não saber ler nem escrever e que o afasta da verdadeira vida. O analfabetismo é imaturidade. Quando a Hanna arranjou coragem para aprender a ler e a escrever, deu o passo da imaturidade para a maturidade, um passo para a renascença.
...
Tive orgulho nela. Ao mesmo tempo, tive pena dela, pena da sua vida atrasada e falhada, do atraso e dos fracassos da vida em geral. Pensei que, quando se deixa passar o momento certo, quando alguém recusou algo tempo de mais, quando nos é recusado algo tempo de mais, esse algo chega forçosamente demasiado tarde mesmo que seja realmente desejado com força e acolhido com alegria. Talvez "tarde de mais" não exista, apenas "tarde", e "tarde" seja sempre melhor do que "nunca"? Não sei."


Para Hanna a maturidade trouxe-lhe uma renascença , mas foi determinante para o seu destino.


Troti
 
sábado, agosto 21, 2004
 
“...quando acendia a luz e agarrava num livro, os olhos fechavam-se, e quando voltava a pôr o livro de lado e apagava a luz, ficava outra vez vígil. Por isso, comecei a ler em voz alta. Dessa maneira, os olhos não se fechavam. E como a Hanna dominava sempre no estado confuso e semiacordado de reflexão, impregnado de recordações e de sonhos girando em círculos dolorosos sobre o meu casamento e a minha filha e a minha vida, comecei a ler para a Hanna...Gravava em cassetes o que lia para ela....Essencialmente lia à Hanna o que eu próprio queria ler naquele momento....
Quando comecei a escrever, também lhe li os meus textos. Mas só depois de ter ditado o manuscrito, de ter revisto o manuscrito dactilografado e de ter a sensação que estava acabado. Lê-lo em voz alta era o modo de me aperceber se essa sensação estava certa....A Hanna tornou-se a entidade para a qual atirava todas as minhas forças, toda a minha criatividade, toda a minha fantasia crítica....Nunca fiz comentários pessoais nas cassettes, não perguntava pela Hanna, nem lhe contava nada de mim.”




Relações impessoais, no entanto possíveis.


Troti
 
  diário impossível
5

Ler poesia em voz alta. Num idioma qualquer. Mesmo que mais ninguém oiça. Mesmo que os vizinhos oiçam.

 
leitora
 
sexta-feira, agosto 20, 2004
  O objecto livro
Como objecto, o livro é coisa fascinante - um monte de páginas impressas onde se esconde a alma humana. Ou não.
Adoro livros. Gosto, como toda a gente, de os abrir e cheirar as páginas. Não gosto do pó que deixam nas mãos qundo são abandonados por muito tempo. Gosto de lhes dobrar as lombadas até quase as rasgar - ou, pelo contrário, de os manter imaculados, como se nunca tivesse sido lidos. Escrevo-lhes o meu nome ou não - indiscriminadamente. Lembro-me de ler que Borges tinha crescido numa família onde, se um livro caía ao chão, era beijado - como outras fazem com o pão. Nunca me preocupei muito com a minha aparente falta de respeito pelos objectos.
 
 
“A culpa colectiva, quer seja aceite ou não do ponto de vista moral ou jurídico, foi uma realidade vivida para a minha geração de estudantes. Não dizia apenas respeito ao que acontecera durante o III Reich. Que as pedras tumulares dos judeus fossem pintadas com cruzes gamadas, que tantos velhos nazis fizessem carreira nos tribunais, e na administração pública e nas uinversidades, que a Alemanha Ocidental não reconhecesse o estado de Israel, que a emigração e a resistência fossem menos concorridas do que a vida vivida na resignação – tudo isto nos enchia de vergonha mesmo quando podíamos apontar o dedo aos culpados. Apontar o dedo aos culpados não nos libertava da nossa culpa. Mas tornava o sofrimento mais suportável.Transformava esse sofrimento passivo em energia, actividade, agressão. E o conflito com os pais culpados estava muito carregado de energia.
Eu não podia apontar o dedo a ninguém. De modo nenhum aos meus pais, porque não poderia acusá-los de nada...
Nesse tempo, invejei os outros estudantes que renegavam os pais e, com eles, toda a geração dos que actuaram, dos espectadores, dos que viraram a cara, dos tolerantes e dos que aceitaram, e que desse modo ultrapassaram o sofrimento provocado pela vergonha. Mas de onde vinha essa arrogante intransigência que exibiam tantas vezes? Como era possível sentir vergonha e culpa, a ao mesmo tempo comportar-se com arrogância e intransigência? O acto de renegar os pais seria apenas retórica, barulho, ruído que deveria abafar o facto de o amor pelos pais implicar irremediavelmente a cumplicidade com as suas culpas?
Isto são pensamentos que me apareceram mais tarde. E, contudo, nem mais tarde me consolaram. Como poderia ser um consolo que o meu sofrimento por ter amado a Hanna fosse o destino da minha geração, o destino dos alemães, com a diferença de que eu não consegui resolver nem consegui esconder tão bem como os outros? E, contudo, nesse tempo ter-me-ia feito bem se me tivesse sentido integrado na minha geração.”



Troti
 
  diário impossível
4

Não vou dizer quantos livros ocupam a prateleira dos "ainda não lidos". Acumulam-se. Invadem uma segunda prateleira. Por estes dias pensei que seria boa ideia comprometer-me a comprar apenas um livro por cada 5 que leia, até acalmar a impaciência dos livros por folhear. Mas só nos devemos comprometer com o que somos capazes de fazer...

 
leitora
 
  Embotamento
Paradigmático exemplo de embotamento, o dos campos de concentração: milhares de judeus contra poucas dezenas de alemães armados. E esses milhares de judeus participaram activamente no seu próprio genocídio sem que nunca lhes tivesse passado pela cabeça qualquer coisa como a sublevação. Ao correr contra as metralhadoras, morreriam as primeiras centenas de judeus mas outras centenas sobreviveriam e, com certeza, os alemães das metralhadoras não ficariam cá para contar a história. Claro, há sempre a esperança de sobreviver, há a família ao nosso lado que se pretende preservar e proteger, há a quase impossibilidade de se combater o instinto de sobrevivência com um cálculo frio (do género: já que vou morrer, mais vale agora pois levo um alemão comigo)… eu sei, falar é muito fácil, mas não deixa de ser impressionante como foi possível esmagar aquele povo a ponto de aniquilar qualquer rasgo de resistência. É tão fácil quebrar moralmente alguém… se nos tratarem continuamente como animais, e continuamente nos lembrarem desse facto, acabaremos por nos convencer que pouco mais somos que animais…

azuki
 
quinta-feira, agosto 19, 2004
  Leitura III
" Qual a importância ética da leitura? (...) O meu ponto de partida, implicando tomar a palavra ética no sentido amplo de ethos, modo de ser e agir do homem - e privilegiando a leitura de determinados textos, os ficcionais de caráter literário -, é que a importância ética da leitura está no seu valor de descoberta e de renovação para a nossa experiência intelectual e moral. A prática da leitura seria um adestramento reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos e dos outros.Por certo que essa prática é solitária. Quem lê isola-se por momentos do mundo, à rebours de la conversation, como observou Proust, e recolhe-se na companhia do livro, à escuta de sua silenciosa conversa. Mas nesse recolhimento, provocado por outra voz que não a nossa e a daqueles que nos rodeiam, trava-se uma singular dialética entre nós mesmos e o texto. A experiência da leitura, particular e momentânea, reverte a favor da experiência da vida, geral e cumulativa. (...)Os textos literários são obras de discurso a que falta a imediata referencialidade da linguagem corrente: poéticos, abolem, "destroem" o mundo circundante, cotidiano, graças à função irrealizante da imaginação que os constrói. E prendem-nos na teia de sua linguagem, a que devem o poder de apelo estético que nos enleia; seduz-nos o mundo outro, irreal, neles configurado, a que aderimos por uma willing suspension of disbelief (desejada suspensão da descrença), assim chamado por Coleridge o efeito de continuidade do apelo estético. No entanto, da adesão a esse "mundo de papel', quando retornamos ao real, nossa experiência, ampliada e renovada pela experiência da obra, à luz do que nos revelou, possibilita redescobri-lo, sentindo-o e pensando-o de maneira diferente e nova. A ilusão, a mentira, o fingimento da ficção aclara o real ao desligar-se dele, transfigurando-o; e aclara-o já pelo insight que em nós provocou."


Benedito Nunes
("Ética e Leitura", in Estado de Leitura).


Troti
 
 
A caligrafia modificou-se. … ganhou algo da beleza severa que pertence à caligrafa dos velhos que escreveram pouco durante a vida.
azuki
 
  projecção futurista
1

A Biblioteca vai substituir notas biográficas, datas de nascimento, mapas do céu. O registo de cada biblioteca pessoal deverá ser cuidado, minuncioso, pois revela de forma clara
quem é o ser
que a alimentou
que dela se alimentou.

Que livros teremos de ocultar, para protecção do nosso eventual bom nome?

 
leitora
 
  Preferências de Leitura
Todo o leitor tem os seus autores preferidos. Nem sempre estes se mantêm como os mais preferidos ao longo da vida, ou muitas vezes se mantêm devido à necessidade de o leitor ter as suas referências sempre à mão, mesmo que, muitas vezes, já não tenha presente as razões objectivas pelas quais prefere determinado autor. Algo semelhante se passa com os livros, embora, com estes, seja mais fácil desligarmo-nos da sensação de culpa de, neste momento, os nossos livros preferidos de uma vida de leitura sejam outros que não aqueles que adorávamos há uns anos atrás. Também porque, na realidade, já não nos lembramos muito bem porque é que gostámos tanto desses livros, e tenhamos mais presentes os livros mais recentes que lemos.
Por vezes desculpamo-nos desta traição, defendendo que, consoante a fase da vida em que nos encontremos, há livros que nos dizem mais que outros. Por uma questão de idade e experiência de vida, por outro ou também por algumas mudanças nas nossas próprias ideias, fruto de amadurecimento pessoal, novas ilusões ou desilusões.

Há um alargar de horizontes que se consolida ao longo de anos e anos de leitura, algo muitas vezes imperceptível mas que funciona de modo automático à medida que lemos novos livros ou relemos determinados livros de que gostámos muito. A nossa situação face a um mesmo livro é sempre diferente, de todas as vezes que o relemos ou que nos deparamos com excertos dele. Já para não falar de quando ouvimos opiniões sobre esse mesmo livro, mas aqui apenas falo de nós próprios face aos nossos livros ao longo do tempo.
É uma obrigação ingrata declararmos que estes são os nossos autores e aqueles os nossos livros preferidos. Pois, se continuarmos a ler, cada vez se torna mais dificil defender essas preferências, uma vez que estamos a abdicar de dezenas de novos autores ou centenas de novos livros que entretanto lemos, em termos de preferências, dando a entender que tomámos a decisão certa e definitiva há muitos anos atrás, quando tinhamos uma experiência de leitura e horizontes de conhecimentos muito mais pequenos que os actuais.

É claro que aqui se coloca a questão da afinidade com os autores. Talvez não se coloque tanto com os livros em si. Ao declararmos que temos grande afinidade com um determinado autor, em que nos sentimos em casa quando lemos alguns dos seus livros, estamos de certa forma a seguir o seu percurso literário, em que, normalmente, existe uma certa evolução, que acompanhamos e na qual, de certa forma, nos identificamos.

As referências devidas a preferências são importantes, mas, passados alguns anos, cheiram um pouco a mofo. Se a essas preferências não juntarmos outras, é possível que os nossos horizontes de conhecimento e experiência se tenham tornado estanques, e, por essa razão, não consigamos absorver aquilo que de diferente e potencialmente enriquecedor um novo conjunto de livros e autores nos trazem.

Por todas essas razões, cada vez fico mais desconfiado com as minhas preferências em termos de livros e autores. Na verdade, já ponho em dúvida se os meus livros preferidos ainda continuarão mesmo a ser os meus livros preferidos. Parece-me já ser mais uma questão sentimental e de vã tentativa de coerência do que uma realidade. Mantenho os meus autores preferidos, mas já não sei onde hei-de encaixar tantos novos autores que me têm deslumbrado. O mesmo se passa com os livros. Chama-se a isto um alargamento de horizontes tal que permite que se tenham dezenas de preferências, classificadas segundo uma estrutura complexa de referências, que tornam completamente redutor e ingénuo responder de uma forma rápida à pergunta de quais são as nossas preferências de leitura. Resposta rápida indica, provavelmente, cristalização do acto de ler.

pns
 
 
A Hanna tornou-se a entidade para a qual atirava todas as minhas forças, toda a minha criatividade, toda a minha fantasia crítica.

azuki
 
quarta-feira, agosto 18, 2004
 
"Apercebia-me de tudo e não sentia nada. Já não estava ofendido pela Hanna me ter abandonado, enganado e utilizado. Também já não sentia necessidade de fazer qualquer coisa por ela. Senti que o embotamento com que eu seguira os horrores do processo se depositara agora nos sentimentos e nos pensamentos tidos nas últimas semanas. Se dissesse que estva alegre com isso, exageraria. Mas senti que era isso do que eu precisava. Era o que me permitiria regressar ao meu dia-a-dia e continuar a viver nele."


Troti
 
 
"Quando hoje recordo esses anos, lembro-me de quão poucas imagens concretas tínhamos na realidade, quão poucas imagens que representassem a vida e o assassínio nos campos de concentração. De Auschwitz, conhecíamos o portão com a inscrição, as camas de madeira sobrrepostas, os montes de cabelos e de óculos e de malas; de Birkenau, o edifício da entrada com a torre, as alas laterais e a estação do caminho de ferro; e de Bergen-Belsen, as pilhas de cadáveres que os Aliados haviam descoberto e fotografado durante a libertação... Nesse tempo, a fantasia quase não se movia; tínhamos a sensação de que a comoção pelo mundo dos campos de concentração não era compatível com o trabalho da imaginação. A imaginação limitava-se a contemplar perpetuamente aquelas poucas imagens dadas pelas fotografias tiradas pelos Aliados e pelos depoimentos de prisioneiros, até que essas imagens se fixaram e se tornaram "clichés...
...
fui para o Struthof, na Alsácia. Era o campo de concentração mais próximo. Nunca tinha visto nenhum. Queria exorcizar os "clichés" com a realidade.

...

Voltei lá há pouco tempo...lembrei-me de que na primeira visita passara pelas escadas que subiam por entre as fundações dos barracões que foram demolidos. Lembrava-me também dos fornos crematórios...Lembrava-me da minha inútil tentativa de tentar imaginar, concretamente, um campo de concentração repleto, e os prisioneiros e as tropas e o sofrimento...
No regresso a casa, primeiro não ousei passear pelas aldeias da Alsácia e procurar um restaurante para almoçar. Esse pejo não vinha de um verdadeiro sentimento mas da reflexão sobre o modo como deveria sentir-me depois da visita a um campo de concentração...

...

Na minha primeira visita andei pelo campo de concentração até fechar...Sentia em mim um grande vazio, como se tivesse procurado, não no que me era exterior mas dentro aquelas imagens que me faltavam, e tivesse de concluir que dentro de mim não havia nada...

Durante a noite, um vendaval fustigou a casa. Não tinha frio, e os uivos do vento, o ranger da árvore à frente da janela e o bater ocasional de uma portada não faziam tanto barulho qyue eu não conseguisse dormir. Mas, interiormente, estava cada vez mais inquieto, até que todo o corpo começou a tremer. Tive medo, não por temer acontecimentos funestos, mas um medo físico. Estava ali deitado, escurtava o vento, ficava aliviado quando este se tornava mais fraco e mais silencioso, receava a sua renovada intensidade e não sabia como poderia levantar-me na manhã seguinte, voltar para casa à boleia, continuar a estudar e, um dia, ter um emprego e mulher e filhos."


Troti

 
  Antes sublinhava imenso os livros
Era como se, sublinhando-os, os tornasse mais meus; tomava posse deles como de um território. A pouco e pouco, fui deixando de o fazer. Comecei a apropriar-me das palavras sem necessidade do lápis. Pensei que assim não influenciaria a releitura que aconteceria mais tarde ou mais cedo. E ler um livro de lápis na mão deixou de ser indispensável. Por vezes copiava para um caderno algumas frases; mas era só. Sempre que desejava voltar a ler uma passagem, fechava os olhos e sabia encontrá-la pela posição na página.
Depois começou a Leitura Partilhada. Copiar passagens de Ulisses tornou-se impossível; ainda assim, o meu exemplar será com certeza um dos mais imaculados. Fui trazendo de novo o lápis para a mesa de cabeceira. E agora ele voltou ao seu velho lugar, riscando e sublinhando, assinalando passagens que saberei igualmente encontrar.

nastenka-d
 
  diário impossível
3

Leio com uma lapiseira na mão. Sublinho, circundo palavras. Destaco frases com chavetas, setas, traços. Marco o livro a carvão. Para me lembrar, para identificar. Para criar um percurso. E para lá deixar algo de mim.

 

leitora
 
  A Nossa Leitura
Tu e eu. A minha leitura e a tua leitura. A minha leitura da tua leitura e a tua leitura da minha leitura. Dois livros iguais. Talvez lidos ao mesmo tempo. Contruções diferentes nas nossas mentes, frutos de experiências de vida necessariamente diferentes, e de experiências diferentes com percepções diferentes. Naturalmente, percepções diferentes na leitura de um mesmo livro. As minhas percepções. As tuas percepções. As minhas percepções somadas às tuas percepções, um conjunto de percepções ainda maior para ambos - dependendo da abertura de espírito, a construção de um universo ainda maior e com muitas outras dimensões de um mesmo livro que ambos lemos.

A leitura é um acto solitário, uma experiência individual. Mas essa experiência, conscientemente, por um lado é tão forte consoante o gozo que o livro nos deu, por outro lado tão fraca enquanto não partilhamos essa mesma experiência de leitura. Primeiro, com nós próprios. Escrever notas, escrever opiniões, reflectindo sobre o que se leu. Tantas e tantas novas dimensões do livro são descobertas, além daquelas de que nos apercebemos na simples mas gratificante leitura. E depois, a partilha contigo, ou com outros que também o leram. Quantas coisas descobrimos sobre esse livro, muitas delas inseridas no subconsciente ou mesmo inconsciente, mas que, depois, com um simples click despertada por uma observação tua, despoleta um conjunto de recordações e de interacções com as minhas próprias percepções do livro, transportando-o para outras dimensões de percepção.

Um livro é uma mina. Sozinho, muita coisa descubro, muitos tesouros que, no fundo, já estavam dentro de mim próprio à espera de serem revelados. Mas é contigo que a flor, depois de nascida, desabrocha por completo com o oxigénio que trazes das tuas percepções e opiniões. E sinto-me crescer. Sinto que, além de ter desvendado, através da minha leitura solitária, muitos aspectos de mim próprio, da minha existência, e do mundo que me rodeia, desvendo ainda muito mais, pela tua óptica sobre o mesmo livro, vislumbro novas fronteiras a explorar, novos horizontes a abrir, e, no final de contas, com esta leitura partilhada, enriqueço-me como ser humano e ainda mais preparado para enfrentar novas leituras e tirar o máximo partido delas. Não me deixes. Preciso de ti.

pns
 
terça-feira, agosto 17, 2004
  diário impossível
2

Não sei que sentimento associar à frase "um livro mudou a minha vida", para além de estranheza. Nenhum livro isoladamente muda a minha vida. Mas todos, e tudo o mais, condiciona o que sou, o que penso, o que desejo.

Se um dia um livro mudasse a minha vida, deixaria de ler.

 

leitora
 
  Ler sem Pensar
Sei que leio sem pensar. E volto a ler, e a ler de novo. E mais uma vez. O mesmo parágrafo, a mesma página. E quanto mais me esforço, menos leio. Quanto mais penso, menos capto. E "sujo" a leitura. Nunca mais consigo ler a mesma página da mesma forma. A melhor leitura é aquela que se faz de forma inconsciente, aquela em que se lê sem pensarmos que estamos a pensar que estamos a ler. Porque senão transforma-se em estudo. E esse tipo de leitura cansa. Esse tipo de leitura dá mais trabalho que prazer.

É claro que é bom pensarmos sobre o que lemos, mas o ideal é sempre uma segunda leitura. Nada sabe melhor que, de repente, virmos que acabámos de ler 10 páginas sem dar por isso (mas tendo realmente absorvido o que estamos a ler). Diz-se que isso tem a ver com o facto de o livro ser "bom" ou não. Mas não me parece. Para mim, é quase como um "milagre" quando isso acontece. Não basta a «disponibilidade mental». É preciso também, tal como acontece aos escritores o «milagre da escrita», o «milagre da leitura». Poucas vezes somos bafejados por esse «milagre», ou eu, pelo menos.

A melhor leitura, para mim, é aquela que se tem, de uma forma tão descontraída, e com a mente tão leve, que basta pensarmos onde estávamos naquele momento, que imediatamente nos lembramos naquilo que estávamos a ler naquela latura. E exactamente o que estávamos a ler, e não o livro em si.

É pena que esse ler sem pensar aconteça tão raramente, pelo menos comigo. Aliás, para mim é mais fácil o tal «milagre da escrita» (pois acontece-me de forma muito mais simples) do que o «milagre da leitura». Talvez porque, quando estamos a escrever, estamos a criar. E criar absorve a nossa mente. Havendo disponibilidade mental, na criação é mais fácil acontecer o milagre. O milagre da inspiração. Tal como para a escrita, este também deve existir na leitura. E creio que esse é mais dificil. Pelo menos para mim. A não ser que queiramos mesmo pensar o livro quando o lemos. Mas eu preferia apenas senti-lo, de forma inocente. Tal como me acontecia nas minhas leituras de criança.

pns
 
 
… o dedo apontado a Hanna voltava-se para mim. Eu tinha-a amado. Não a tinha apenas amado, eu tinha-a escolhido. Tentei convencer-me de que o meu estado de inocência era o mesmo com que os filhos amam os pais. (…) E talvez até sejamos responsáveis pelo amor que temos pelos pais. (…) O acto de renegar os pais seria apenas retórica, barulho, ruído que deveria abafar o facto de o amor pelos pais implicar irremediavelmente com as suas culpas? Como poderia ser um consolo que o meu sofrimento por ter amado a Hanna fosse o destino da minha geração, o destino dos alemães..?

Amar um culpado = cumplicidade = outro culpado

A Alemanha viveu meio século a tentar reconciliar-se consigo própria, a lutar contra a vergonha, o espanto, a incredulidade, a culpa. Este livro fala-nos sobre a ética do amor, de gerações desorientadas nos seus afectos, da vontade de compreender e da dificuldade em perdoar. Fala-nos também de uma sociedade ressentida, sob o peso de uma herança terrível. Nunca será possível repor aquilo que uma guerra destruiu. Mas tem que ser possível enfrentar o passado, pô-lo à mostra, aprender com os erros, construir o futuro sobre outras bases.

azuki
 
segunda-feira, agosto 16, 2004
  diário impossível
1

Assino leitora. Nick escolhido para participar num fórum internacional, em torno de livros, depois de muitas recusas e imaginação esgotada. Por influência do livro "Se Uma Noite de Inverno um Viajante" de Italo Calvino.

Hoje não vejo esta escolha como feliz, pela sua carga. Mas não me apetece criar outra entidade imaginária.

(uma) leitora
 
 
A outra desvantagem da leitura em voz alta era o facto de demorar mais tempo. Em contrapartida, tudo o que lia em voz alta permanecia na memória.
Bernhard Schlink, O Leitor

Partilhar leituras é um pouco como ler em voz alta. Deixa mais marcas.

nastenka-d
 
  A Leitura Solta o Espírito
Sinto-me triste quando não me apetece ler. Uma vez que tal é sinónimo de falta de disponibilidade mental - e isso significa apenas uma coisa - que estou demasiado embriagado com a rotina do dia a dia, que não consigo elevar o meu espírito de forma a poder contemplar e viver com maior amplitude o que me rodeia. E é tentando ler um livro que mais facilmente me deparo com o meu estado de autómato. Vem, livro, vem, deixa-me megulhar em ti e através de ti aceder a mim próprio, para através dele e através de mim me transcender e ver coisas que nunca vi ou senti - o acto de leitura diversifica e refina as nossas percepções da vida.

pns
 
 
"Fazer algo...Esse algo só podia ser uma coisa. Poderia ir ter com o juiz e contar-lhe que a Hanna era analfabeta....Que ela se tinha prejudicado muito na sua defesa. Que ela era culpada, mas não tão culpada como parecia.
...
Decidi falar com o meu pai.



Quando falou, começou muito atrás, mosstrando-me os conceitos. Ensinou-me sobre a pessoa, a liberdade e a dignidade, sobre o Homem como sujeito, e que ninguém tem o direito de o converter em objecto
...
não encontro com facilidade justificação para impor a alguém algo que um outro acha que é bom para ele, preterindo que o primeiro acha que é bom para si próprio.
- Nem quando mais tarde ficam felizes com isso?
Ele abanou a cabeça.
- Nós não estamos a falar sobre a felicidade, mas sim sobre a dignidade e a liberdade.



Não, o teu problema não tem uma solução agradável...Ao sabermos o que é melhor para o outro, e sabendo que ele se nega a vê-lo, temos que tentar abrir-lhe os olhos. Devemos deixar-lhe sempre a última palavra..."

Troti
 
 
A Hanna foi condenada a prisão perpétua. Um olhar arrogante, ferido, perdido e infinitamente cansado.

Hanna prefere esconder aquele segredo que a envergonha: não o passado manchado, mas o facto de não saber ler. Sim, ela prefere enfrentar uma pena de prisão perpétua a assumir que é analfabeta.

Quão estranhas são, por vezes, as nossas concepções de dignidade…

azuki
 
domingo, agosto 15, 2004
  Leitura II
"O único conselho que realmente se pode dar sobre leituras é o de não aceitar conselhos, seguir o próprio instinto, usar o próprio discernimento e chegar às suas próprias conclusões. Afinal, que regra pode-se estabelecer sobre os livros?"

Virginia Woolf
in "How should one read a book", 1926)


Troti
 
 
"Os meus pensamentos desviavam-se sempre e sempre, perdidos em imagens.
Vi a Hanna perto da igreja em chamas, com uma expressão dura, de uniforme negro e um pingalim...Vi-a escutando enquanto lhe liam em voz alta...Vi Hanna a percorrer as ruas do campo de concentração e a entrar nas barracas das prisioneiras e a fiscalizar os trabalhos das obras...Vi o campanário caindo sobre o telhado da igreja e as chispas a saltarem, e ouvi os gritos de desespero das mulheres...Perto destas imagens via as outras. A Hanna calçando as meias na cozinha, segurando o toalhão diante da banheira, andando de bicicleta com o vestido flutuante..., a Hanna escutando-me, falando comigo, sorrindo-me, amando-me. Mau era quando as imagens se misturavam. A Hanna amando-me com os olhos frios e os lábios apertados...e com a face numa careta feia. Pior ainda eram os sonhos em que a dura, masculina e cruel Hanna me excitava sexualmente e dos quais acordava com saudades, vergonha e indignação. E com medo de não saber quem eu era realmente."


Troti
 
 
"Afinal, eu sabia por experiência própria que a vergonha nos força a ter um comportamento esquivo, defensivo, a ocultar e simular as coisas, inclusivamente a ferir os outros. Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento de Hanna durante o julgamento e no campo de concentração? Que preferisse ser acusada de um crime a passar por analfabeta? Que cometesse um crime por ter medo de se mostrar analfabeta?
Quantas vezes, então, não me fiz e continuei fazendo essa mesma pergunta! Se o motivo da Hanna era o medo de ser desmascarada, por que razão é que em vez da exposição simples como analfabeta escolheu outro muito pior: como criminosa? Ou acreditava ela ser possível livrar-se daquilo sem ser desmascarada? Era simplesmente estúpida? E era tão fútil e má que se tornasse numa criminosa para evitar um desmascaramento?
Naquele tempo, e desde então, neguei-me a acreditar em tal coisa. Não, dizia eu para mim próprio, a Hanna não se decidiu pelo crime. Decidiu-se contra a promoção na "Siemens" e foi parar ao trabalho como guarda. E não, ela não enviava no transporte para Auschwitz as fracas e as débeis porque tinham lido para ela, mas havia-as escolhido para a leitura porque queria tornar-lhes mais suportável o último mês, antes de terem de voltar, impreterivelmente, para Auschwitz. E durante o julgamento não teve dúvidas na escolha entre passar por analfabeta ou por criminosa. Não fez cálculos nem traçou um táctica. Simplesmente, aceitou que iam castigá-la; só não queria, ainda por cima, ser exposta. Não velava pelos seus interesses: lutava pela sua Verdade, pela sua Justiça. E, porque tinha sempre de simular um pouco, porque nunca podia ser muito franca, nunca totalmente ela própria, eram uma verdade lamentável e uma justiça lamentável, mas eram as suas, e a luta por elas era a sua luta.

...

A Hanna continuou a lutar. Confessou o que era verdade e negou o que não era verdade. Negou com uma vêemencia cada vez mais deseperada. Não gritava. Mas a intensidade com que falava já chocava o Tribunal.
Finalmente desistiu.

...

Para ela, a sua imagem valia uns anos de cadeia?
Mas será que valia?"


Ela achou que sim.

............

Até que ponto estava Hanna consciente do seu crime? Quando ela pergunta se é importante saber quem escreveu o relatório, mostra a ignorância da extensão do dano, escapa-lhe o reconhecimento da fronteira. Até que ponto estava Hanna consciente da sua ignorância? Até que ponto estava Hanna consciente dos seus limites como pessoa? Até que ponto estava Hanna consciente do seu comportamento como ser humano?

Até que ponto estamos, nós espectadores, conscientes da sua verdadeira natureza?

............

Até que ponto estamos conscientes da nossa verdadeira natureza?

Li que era de Platão a seguinte frase( peço desculpa se não forem exactamente estas as palavras) :

"Se nós pudessemos ser invisíveis, seríamos todos assassinos"


A conclusão é que não estamos conscientes da verdadeira natureza de Hanna, nem sequer conseguimos realmente estar conscientes da nossa própria natureza, e é essa a razão porque esta leitura incomoda. Porque levanta questões para as quais não temos respostas exactas. E porque nos mostra um contorno da realidade que pura e simplesmente não estamos preparados para ver.

Troti

 
  Leitura 1
"O que difere essencialmente um livro de um amigo não é sua menor ou maior sabedoria, mas o modo como comunicamos com ele, a leitura, a contrapelo da conversa, consistindo para cada um de nós em receber comunicação de outro pensamento, porém a sós, isto é, continuando a usufruir do poder intelectual que se tem na solidão e que a conversa imediatamente desfaz (...)É uma das grandes e maravilhosas características dos belos livros (e que nos faz compreender o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura sabe ter em nossa vida intelectual), eles poderem para o autor chamar-se Conclusões e para o leitor, Incitações. Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde termina a do autor, e gostaríamos que ele nos trouxesse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é trazer-nos desejos. É quando nos disse tudo o que podia dizer que ele faz brotar em nós o sentimento de que ainda não disse nada."
(in "Journées de Lecture", Pastiches et Mélanges)
Marcel Proust

 
Troti


 
sábado, agosto 14, 2004
 
"A minha caligrafia? O senhor quer comparar a minha caligrafia com...
...
A Hanna escutava-os e tentou, por várias vezes, dizer ou perguntar qualquer coisa. Estava cada vez mais assustada. Depois disse:
- Não é necessário ir buscar nenhum perito. Confesso ter escrito o relatório.


....


Enquanto pensava na Hanna, gravitando semana após semana no mesmo itinerário, um pensamento separou-se, seguiu o seu próprio caminho e, finalmente, produziu a sua própria conclusão. Quando a ideia amadureceu, caiu com o seu próprio peso. O facto de a revelação que me veio surpreender não chegar do exterior mas sim que tivesse crescido dentro de mim, poderia ter sido em qualquer outro lugar, ou pelo menos em qualquer outro ambiente e circunstâncias suficientemente familiares. E foi num caminho escarpado que ascende pela falda do monte, atravessa a estrada, passa diante de uma fonte e, depois de cruzar por entre árvores velhas, altas e escuras, se perde numa mata esparsa.
A Hanna não sabia ler nem escrever."



A verdade está muitas vezes oculta num campo visual inacessível aos olhos.


Troti



 
 
"- Foi a senhora que escreveu o relatório?
- Nós pensávamos em conjunto o que deveríamos escrever. Não queríamos acusar os que tinham fugido. Mas também não queríamos assumir que tivéssemos feito algo de errado.
- Está, portanto, a dizer que pensaram em conjunto. Quem é que escreveu?
- Tu! - gritou a outra acusada, apontando Hanna outra vez com o dedo.
- Não, eu não o escrevi. É importante saber quem o escreveu?


Troti
 
 
“- Porque é que não abriu a porta?
- Nós estávamos...nós tínhamos...
Hanna procurava a resposta.
- Não sabíamos o que fazer.
- A senhora não sabia o que fazer?
...
- Nós não sabíamos o que fazer. Tudo se passou tão depressa...
...
-Teve medo? Teve medo que as prisioneiras as dominassem?
- Que as prisioneiras nos...não, mas como seria possível manter a ordem outra vez? Teria havido uma grande confusão que não teríamos conseguido controlar. E se elas tentassem fugir depois...
...
- Nós simplesmente não podíamos deixá-las fugir! Nós éramos responsáveis por elas...Quero dizer, nós vigiávamo-las durante todo o tempo, no campo de concentração e durante a marcha, esse era o objectivo, que as vigiássemos e que elas não fugissem. Por essa razão, não sabíamos o que deveríamos fazer.
....
Era claro que as guardas se haviam encontrado numa situação muito difícil. Mas poderia o conhecimento da dificuldade da situação apagar o horror daquilo que as acusadas tinham feito, ou deixado de fazer? Não se tratava, por exemplo, de um acidente de viação numa estrada solitária numa noite fria de Inverno, com feridos e carros totalmente destruídos, em que não se sabe o que fazer. Ou de um conflito entre dois deveres iguais. Era possível imaginar-se dessa maneira a situação que a Hanna descreveu, mas ninguém queria fazê-lo.”



“Perdoam-se os crimes individuais, mas não a participação num crime colectivo.”

Marcel Proust
(“Em Busca do Tempo Perdido” – Vol.III – “O Lado de Guermantes” – pág.152)


Troti

 
  Considerações sobre a Terceira Parte de «O Leitor»
Findo o julgamento e e a discussão mais generalizada das questões dos crimes cometidos na segunda guerra mundial, o plano volta para os dois protagonistas deste romance.
Berg não é muito bem sucedido em termos da sua vida pessoal, nomeadamente sentimental. Não consegue encontrar noutras mulheres aquilo que encontrou com Hannah - até que ponto Hannah condicionou toda a sua vida amorosa futura? Ou, generalizando, como outro personagem insinuou a Ber no final do livro, até que ponto é que a sedução "irresponsável" de uma mulher mais velha e madura pode marcar irremediavelmente um homem a ponto de nunca mais conseguir encontrar a mulher da sua vida (uma vez que essa terá sido a primeira).

Berg volta a ler para Hannah. Mas agora, uma vez que se encontra presa, através de cassetes audio que lhe são enviadas com grande regularidade. No entanto, nunca se chegam a encontrar.
Até que um belo dia Hanna está a poucos dias de sair da prisão. Dá-se, finalmente o encontro na prisão, a uma semana antes da saída de Hannah. Mais uma vez poucas palavras. Como sempre foi a sua relação.

No entanto, acontece o inevitável. E depois do inveitável, algo ainda mais surpreendente. Afinal Hannah estaria à espera de um "sinal" de Berg. Berg que se limitava às suas leituras. Mas durante aqueles anos todos esperava uma carta, no meio de tantas cassestes. Entretanto, Hannah, devido a tantas leituras, enveredou pelas suas. Tomou ainda maior consciência do ambiente que se vivia aquando dos crimes particados durante a Guerra. E, conscientemente, tomou a sua decisão fatal. Mais uma vez, digna.

Hannah condicionou toda a vida de Berg, e Berg condicionou grande parte da vida de Hannah. Inconscientemente. Embora sem palavras se tivesse percebido muito mais que as palavras, as palavras fizeram falta para "oficializar" o óbvio. Pois há sempre momento em que a formalidade é necessária. Que tem que ser dito o que se está à espera de ser dito. Por mais que isso esteja escrito na cara da outra pessoa. É a fatalidade das relações trágicas entre os seres humanos.

Outra dimensão do livro, a acrescentar a tantas que tornam esse livro muito mais rico do que aparenta. E, certamente, com muito mais perspectivas e dimensões que aquelas que relatei, além do fio essencial (será, para outra pessoa que o tenha lido ? - não creio, o que justifica a riqueza do livro ) da história em si.

pns
 
  Impressões
Como disse a Troti logo ao abrir da leitura, este livro incomodou-me. Não é um livro bem escrito, envolvente. Tem falhas visíveis na forma, tantas que ao lê-lo, me ficou a sensação de que o livro valia mais pelo que não era dito, mas apenas sugerido, do que pelo que estava impresso.
O centro, o cerne é sem dúvida a segunda parte, a do julgamento, em que as questões são colocadas, não de uma forma impessoal mas como se fosse perguntado a cada um de nós, como ao juiz: O que é que teria feito? E é isso que me ficou do livro, a impressão de que os seres humanos (e eu entre eles) são todos parecidos, capazes das coisas mais terríveis e monstruosas; que basta aumentar ligeiramente o grau de embotamento, ou a necessidade de sobrevivência, para que cada um seja capaz de cometer as maiores atrocidades. Mais do que qualquer outra coisa, ler este livro foi colocar-me em frente a um espelho sob uma luz crua, e ver, ver, ver.
nastenka-d
 
sexta-feira, agosto 13, 2004
  Considerações sobre a Segunda Parte de «O Leitor»
A segunda parte. A história muda de plano, por completo. Alguns anos mais tarde. Berg a terminar a sua licenciatura em direito, um estágio a assistir a julgamentos de situações passadas na Segunda Guerra Mundial.

Hanna no banco dos reús.

Quando parece que a história irá continuar centrada nos dois personagens, tal não acontece. Pode-se-ia dizer que o pano de fundo é o julgamento, mas não: o pano principal é o julgamento e as questões ligadas aos criminosos de guerra, ou mais concretamente, como é que a geração seguinte (filhos) à da segunda guerra munidal geriram os seus sentimentos e o pesado fardo dos horrores praticados, sob coacção ou não, pelos seus pais durante a segunda guerra mundial.
É alguém culpado e passível de castigo, com prisão ou algo mais, se praticou crimes sob coacção de alguém, ou por ordem de alguém, sabendo que a não obediência poderia acarretar severas consequências, inclusivamente a morte ?

Uma questão extremamente complexa, especialmente tendo em conta que é muitas vezes ténue a linha que se separa a obrigação da iniciativa de cada pessoa.

A somar a isto há o sentimento de culpa da geração seguinte à segunda guerra mundial, que tinham que "limpar a face" perante o mundo e perante si próprios, e alguns dos procedimentos que tomaram, nomeadamente no julgamento de pessoas, foram por vezes subjugados pelos seus próprios sentimentos e pela obrigação de dar exemplos face à sua consciência de que estavam a "corrigir" o seu passado - como se eles, se estivessem no lugar dos seus pais, procedessem de forma diferente que eles - o engano da humanidade, que, em tempo de paz, acredita que nunca praticaria esta ou aquela acção, quando no fundo, são todos, em situação limite, meros animais com instinto de sobrevivência bem activo.

É nesse contexto complexo que se encontra Hannah. A acção que ela praticou pode ser considerada crime? Há tantas situações de interpretação subjectiva. Perante tudo isto, Hannah tomou uma postura frontal, de total aceitação dos factos, sem se procurar justificar por estes, quando, no fundo, se poderia defender. Problema de consciência? A pureza do ser humano, que, mesmo em situação limite, consegue, afinal, preservar a sua dignidade e aceitar consequências de um acto ou conjunto de actos pelos quais não foi totalmente responsável, ou que seriam defensáveis se fossem conhecidos todos os contextos envolventes?

pns
 
 
Habituação ao horror, pura indiferença à barbárie. Os gaseamentos, as cremações, as valas comuns, os espancamentos, as doenças, as traições, a fome, as selecções para a morte, aproveitar tudo o que é de aproveitar de um cadáver, tudo isso passa a ser banal, tudo isso passa a fazer parte do quotidiano. Embotados. Prisioneiros e carrascos com as emoções embotadas.

azuki
 
  O livro de ausências
Este livro tem ausência de palavras. A tensão da história está na falta de comunicação entre as personagens, que culmina com a brutalidade com que nos são reveladas certas circunstâncias dramáticas, sem introdução, sem eufemismos. Foi precisamente pela ausência que gostei muito de o ler.


leitora
 
 
Acusar parecia-me uma simplificação tão grotesca como defender, e o papel de juiz era, de entre todas as simplificações, a mais grotesca.

nastenka-d
 
 
Mas o dedo apontado a Hanna voltava-se para mim. Eu tinha-a amado. Não a tinha apenas amado, eu tinha-a escolhido.

nastenka-d
 
  … a comoção provocada pelo mundo dos campos de concentração não era compatível com o trabalho da imaginação…
azuki
 
quinta-feira, agosto 12, 2004
 
Queria compreender e, ao mesmo tempo, condenar o crime de Hanna. Mas era demasiado medonho. Quando tentava compreendê-lo, tinha a sensação de já não o condenar como devia. Ao condená-lo como devia, não ficava nenhum espaço para a compreensão. Mas, ao mesmo tempo, eu queria compreender a Hanna; não a compreender significava voltar a atraiçoá-la. Não consegui resolver o dilema. Queria assumir as duas coisas ao mesmo tempo: a compreensão e a condenação. Mas não era possível.

Uma geração atormentada pela memória, uma geração que viveu a tropeçar no passado. Uma geração que sabia que o futuro de um país não se constrói sem reconciliação. Mas que sabia também que a reconciliação só será possível quando cá para fora tiverem sido atirados todos os fantasmas herdados. Para que o ódio não perdure.

azuki
 
 
Quando nós, crianças, lhe queríamos falar, o pai marcava-nos uma hora. “Como pai, acho que o facto de não poder ajudar os meus filhos é simplesmente insuportável.” Achei que ele estava a simplificar as coisas; eu sabia quando é que ele deveria ter-se preocupado mais connosco, e como poderia ter-nos ajudado mais. Depois pensei que ele talvez também o soubesse e sofresse realmente com isso. “Podes voltar sempre.” Não acreditei nele, e fiz que sim com a cabeça.

Quantas pessoas não sentirão na pele estas frases...
Caramba, devia haver exames de aptidão para a paternidade!

azuki
 
 
«Não importa o que fiz e o que não fiz e o que ela me fez – tudo isto se tornou a minha vida.»

leitora
 
 
A culpa colectiva, quer seja aceite ou não do ponto de vista moral ou jurídico, foi uma realidade vivida para a minha geração de estudantes. Que as pedras tumulares dos judeus fossem pintadas com cruzes gamadas, que tantos velhos nazis fizessem carreira nos tribunais, e na administração pública e nas universidades, que a Alemanha Ocidental não reconhecesse o estado de Israel, que a emigração e a resistência fossem menos concorridas do que a vida vivida na resignação - tudo isso nos enchia de vergonha mesmo quando podíamos apontar o dedo aos culpados. Apontar o dedo aos culpados não nos libertava da nossa culpa. Mas tornava o sofrimento mais suportável.

nastenka-d
 
 
E como, sempre que se lê numa língua que não se domina e com a qual guerreamos, o resultado é sempre uma estranha combinação de distância e de proximidade, esforçamo-nos por mergulhar o mais possível no texto mas não conseguimos apropriarmo-nos dele.

azuki
 
  Com a energia que investia na mentira da sua vida, já há muito que poderia ter aprendido a ler e a escrever.
azuki
 
quarta-feira, agosto 11, 2004
 
Estas imagens nunca são demais, para que não nos esqueçamos do horror, do horror, do horror.











azuki
 
 
Senti que o embotamento com que eu seguira os horrores do processo se depositara agora nos sentimentos e nos pensamentos tidos nas últimas semanas. Se dissesse que estava alegre com isso, exageraria. Mas senti que era disso que eu precisava. Era o que me permitia regressar ao meu dia-a-dia e continuar a viver.

nastenka-d
 
 
«Será que o mundo pode tornar-se tão insuportável nos anos da solidão? Preferiremos cometer o suicídio a sairmos do convento, a sairmos do ermitério e tornar ao mundo?»

leitora
 
 
Queria compreender e, ao mesmo tempo, condenar o crime de Hanna. Mas era demasiado medonho. Quando tentava compreendê-lo, tinha a sensação de já não o condenar como devia. Ao condená-lo como devia, não ficava nenhum espaço para a compreensão. Mas, ao mesmo tempo, eu queria compreender Hanna; não a compreender, significava voltar a atraiçoá-la. Não consegui resolver o dilema. Queria assumir as duas coisas ao mesmo tempo: a compreensão e a condenação. Mas não era possível.

nastenka-d
 
 
De qualquer modo, o facto de não ter sido eu a afastá-la não modificava em nada o facto de a ter atraiçoado. Por isso, eu era culpado. E se não era culpado porque atraiçoar uma criminosa pode não ser motivo de culpa, era culpado porque amara uma criminosa.

nastenka-d
 
terça-feira, agosto 10, 2004
  Considerações sobre a Primeira Parte de «O Leitor»
Primeira parte aparentemente banal. Um adolescente, uma mulher madura, o deslumbramento do rapaz perante o amor/sexo fácil, a rotina do dia a dia ponteada de encontros tórridos. O que leva uma mulher madura a ter um caso com um adolescente? O que alimenta estes casos que estão sempre condenados ao insucesso mas valem, pelo menos para qualquer adolescente, como uma aprendizagem rápida dos primeiros segredos de uma relação entre homem e mulher, sem terem que passar pelas experiências com outra adolescente inexperiente?

Como caso particular (que diferenciam todas as relações amorosas) o gosto da leitura; mais concretamente, o gosto de Hanna em ouvir Berg a ler. Sem dúvida uma nova experiência de leitura para Berg, como ele próprio diz, ler em voz alta ajuda a memorizar. É um facto. Todo o exercicio que se faz à volta de uma leitura ajuda a consolidar essa mesma leitura na nossa memória, pois a memória guarda melhor os actos que os pensamentos - neste caso aquilo que se leu que, por breves instantes passam pela nossa memória. Ler em voz alta, tal como transcrever excertos, tomar notas, reflectir sobre o livro no final e escrever alguma coisa sobre ele ajuda-nos a memorizar o que lemos.

Quanto à suposta banalidade da primeira parte, é mais aparente que verdadeira. É, talvez, uma falsa banalidade. Como se pode deduzir ao se ler as seguintes duas partes do livro. No final de contas, todos os pormenores são importantes, Schlink é muito bom nisso - de relatar pormenores que parecem não ter importância mas que, face a várias lacunas, principalmente de comunicação entre personagens, nos fazem deduzir muito mais dos personagens do que se tivéssemos mais infomação directa (sobre a forma de diálogos, monólogos ou outros) sobre eles.
Assim, a soma das partes (como em qualquer livro, mas neste tal facto é muito mais notório) é muito menor que aquela que se consegue deduzir delas, conjugando-as de várias formas.

Por isso, leitura atenta à primeira parte, não obstante parecer demasiado linear, é muito importante. Atenção aos detalhes.

pns
 
  2ª parte
Nada me custou muito. Tudo me era fácil, tudo era ligeiro. (…) Depois dela, nunca mais me deixaria humilhar nem humilharia ninguém; nunca faria alguém sentir-se culpado, nem me fariam sentir culpado; nunca mais amaria tanto alguém que me fizesse sofrer tanto a sua perda. (…) Reconheci-a, mas não senti nada. (…) Assustei-me. Apercebi-me de que achava a prisão da Hanna natural e certa…. Porque enquanto estivesse presa estaria fora do meu mundo. (…) Mas a recordação era apenas um registo. Não sentia nada. Não senti nada durante as semanas que durou o processo, tinha os sentimentos como que embotados. Quem me havia anestesiado?

Como é que pude achar que tinha o direito de o condenar à vergonha eterna? Mas fi-lo. Todos condenámos os nossos pais à vergonha eterna, ainda que só os pudéssemos acusar de terem tolerado, depois de 1945, a companhia dos assassinos. (…) Quanto mais medonhos fossem os acontecimentos … mais certos ficávamos da nossa missão esclarecedora e acusadora.

Como devia e como deve fazer a minha geração, a dos que nasceram mais tarde, acerca das informações que recebíamos sobre os horrores do extermínio dos judeus? Mas pergunto-me se as coisas deviam ser assim: uns poucos, condenados e castigados, e nós, a geração seguinte, emudecida de espanto, de vergonha e de culpa.

Eu sabia por experiência que a vergonha nos força a ter um comportamento esquivo, defensivo, a ocultar e a simular as coisas, inclusivamente, a ferir os outros. (…) Eu era culpado. E se não era culpado, porque atraiçoar uma criminosa não pode ser motivo de culpa, era culpado porque amara uma criminosa.


Seremos até culpados por amarmos quem não conhecemos? A identidade de um indivíduo constrói-se a partir do passado. É preciso aprender a viver com uma herança que se preferiria renegar. Michael vive entre o dilema de condenar e amar, desprezar e compreender. É o representante daquela geração que teve a difícil tarefa de encontrar um equilíbrio, ainda que instável, entre a sua noção de justiça e os seus próprios afectos.

azuki
 
 
Mas poderia o conhecimento da dificuldade da situação apagar o horror daquilo que as acusadas tinham feito, ou deixado de fazer? Não se tratava, por exemplo, de um acidente de viação numa estrada solitária numa fria noite de Inverno, com feridos e carros totalmente destruídos, em que não se sabe o que fazer. Ou de um conflito entre dois deveres iguais. Era possível imaginar-se dessa maneira a situação que a Hanna descreveu, mas ninguém queria fazê-lo.

nastenka-d
 
 
«Quando se deixa passar o momento certo, quando alguém recusou algo tempo demais, quando nos é recusado algo tempo demais, esse algo chega forçosamente demasiado tarde mesmo que seja realmente desejado com força e acolhido com alegria. Talvez «tarde demais» não exista, apenas «tarde», e «tarde» seja sempre melhor do que «nunca»? Não sei.»

leitora
 
 
...dessa maneira, cada uma era dona de uma esperança de vida de vinte meses, quando se tinha apenas forças médias, e podia-se sempre esperar ser mais forte do que a média.

Esta frase recordou-me o que Primo Levi escreveu sobre a culpa dos sobreviventes. A culpa por terem sobrevivido muitas vezes à custa dos outros, por serem mais fortes ou mais torpes. Nem que esta torpeza se reduzisse ao desejo de ser mais forte do que a média. Por se terem visto, face à necessidade e ao instinto de sobrevivência, privados do sentimento de solidariedade humanitária, por aqueles que, no entanto, lhes eram mais próximos, pelos que partilhavam o seu destino.
Mais uma vez, bem sei que me arrisco a comparar o incomparável, bem sei que a diferença é fundamental e decisiva.
Mas a interrogação sobre a nossa verdadeira natureza humana não é, por isso, menos pertinente.

nastenka-d
 
segunda-feira, agosto 09, 2004
  1ª parte
Sobre a minha memória do seu rosto de então foram-se depositando, com o passar dos anos, os seus outros rostos. (…) Um rosto largo, áspero, de mulher adulta. Sei que era bonito. Mas não consigo lembrar-me da sua beleza. (…) Tinha gestos fluidos, graciosos, sedutores; uma sedução que não é seios e nádegas e pernas, mas sim o convite para esquecer o mundo dentro do corpo.

Se o olhar ávido era tão mau como o acto de satisfação do desejo, e a fantasia activa tanto como o feito em si mesmo, então porque negar-se a satisfação e o acto? (…) Como se ela tivesse apenas querido ganhar um jogo de poder.

Na noite seguinte apaixonei-me por ela. (...) “Como te chamas?” perguntei-lhe no sexto ou no sétimo dia. (...) Não sei nada do amor dela por mim. (…) Mas foi como se quisesse afogar-se comigo.

É uma das imagens que me ficaram da Hanna. Memorizei-as, consigo projectá-las numa tela interior e olhá-las, imutáveis, sem desgaste. Por vezes não penso nelas durante muito tempo. Mas acabam sempre por me voltar ao pensamento. (…) O meu corpo sentia a falta da Hanna.

Por é que eu, quando ela esteve ali de pé, não me tinha levantado de um salto e correra para ela? Como castigo, ela fora-se embora.

Porquê? Por que razão, quando olhamos para trás, o que era bonito se torna quebradiço, revelando verdades amargas?


Não é por coincidência que as suas idades são díspares. Esta relação conflituosa, tensa, estranha, forte, é o paralelo da relação entre as duas gerações na Alemanha.

azuki
 
 

"- Quer dizer, então, que eu deveria...que eu não deveria...que não me deveria ter alistado quando estava na Siemens?
A pergunta não era dirigida ao juiz. Estava a falar consigo própria, perguntava a si própria, hesitante, por que razão nunca considerara a questão, e duvidava que essa fosse a pergunta correcta, e também desconhecia a resposta."


Troti
 
 
"Depois de algum tempo, achava que podia observar nos outros um estado de atordoamento semelhante.
...
Tal como o prisioneiro dos campos de concentração, que sobrevive mês após mês e se habitua à situação e regista com indiferença o horror dos que acabam de chegar. Com o mesmo embotamento com que se apercebe dos crimes e das mortes. Toda a bibliografia dos sobreviventes fala desse embotamento, sob o qual as funções vitais ficavam reduzidas à expressão mais simples, em que o comportamento se torna apático e os escrúpulos desaparecem em que o gaseamento e a cremação se tornam factas quotidianos.
...
os próprios criminosos são reduzidos a umas poucas funções, ficam desprovidos de escrúpulos, apáticos, num embotamento semelhante ao dos anestesiados ou bêbados. As acusadas pareciam-me como se ainda estivessem presas desse embotamento e fossem ficar assim para sempre; como se, de certa maneira, tivessem ficado petrificadas nele.
Quando me apercebi desse embotamento geral, que não afectava apenas os criminosos e as vítimas mas também a nós...comparava os criminosos, as vítimas, os mortos, os vivos, os sobreviventes e os que haviam nascido mais tarde, e não me sentia nada bem, nem agora me sinto. Será lícito fazer estas comparações? Quando conversava com alguém e tentava estabelecer comparações deste tipo, frisava sempre que não pretendia relativizar a diferença entre ser obrigado a entrar no mundo dos campos de extermínio ou entrar neles voluntariamente, entre ter sofrido ou ter feito sofrer; a diferença era de uma enorme importância e totalmente decisiva. Mas a reacção dos meus interlocutores, por mais que me antecipasse à sua réplica com essas explicações, era sempre de estranheza ou de indignação."


Também eu não me sinto bem quando abordo este tema.


"Não devemos aspirar a compreender o que é incompreensível, nem temos o direito de comparar o que é incomparável, nem de fazer perguntas, porque aquele que pergunta, ainda que não ponha em dúvida o horror, torna-o objecto de comunicação em vez de o assumir como algo perante o qual só se pode emudecer de espanto, de vergonha e de culpa. Devemos apenas calar-nos, espantados, envergonhados e culpados?"


Não é possível calar.


Troti
 
 
«Ler em voz alta era a minha maneira de falar para ela, de falar com ela.»

leitora
 
 
«No caso de A Odisseia, ao princípio foi difícil ler em voz alta e concentrar-me tanto como quando lia para mim. Mas, com o tempo, fui-me acostumando. A outra desvantagem da leitura em voz alta era o facto de demorar mais tempo. Em contrapartida, tudo o que lia em voz alta permanecia na memória. Ainda hoje me lembro muito claramente de bastantes coisas.»

leitora
 
  - Eu fiz... Quero dizer... O que é que o senhor teria feito então?
A Hanna fez a pergunta a sério. Não sabia que outra coisa poderia ou deveria ter feito, e queria ouvir do juiz, que parecia saber tudo, o que ele teria feito no lugar dela.

Ela quisera saber o que deveria ter feito naquela situação e não que não existem coisas que não se devem fazer.

nastenka-d
 
  Devemos apenas calar-nos, espantados, envergonhados e culpados?
Mas pergunto-me se as coisas deviam ser assim: uns poucos, condenados e castigados, e nós, a geração seguinte, emudecida de espanto, de vergonha e de culpa.

nastenka-d
 
domingo, agosto 08, 2004
 
Quando me apercebi desse embotamento geral, que não afectava apenas os criminosos e as vítimas mas também a nós – juízes e jurados, advogados do Ministério Público ou meros espectadores encarregues de fazer a acta, todos nós haveríamos de ser afectados – comparava os criminosos, as vítimas, os mortos, os vivos, os sobreviventes e os que haviam nascido mais tarde, e não me sentia nada bem, nem agora me sinto bem. Será lícito fazer estas comparações? Quando conversava com alguém e tentava estabelecer comparações deste tipo, frisava sempre que não pretendia relativizar a diferença entre ser obrigado a entrar no mundo dos campos de extermínio ou entrar neles voluntariamente, entre ter sofrido ou ter feito sofrer; a diferença era de uma enorme importância e totalmente decisiva. Mas a reacção dos meus interlocutores, por mais que me antecipasse à sua réplica com essas explicações, era sempre de estranheza ou de indignação.

Eu compreendo a comparação, embora tenha dificuldade em exprimi-la; não tem só a ver com o embotamento a que estavam todos sujeitos, fosse qual fosse o seu papel durante e depois. Seria possível abarcar o horror sem esse embotamento? Não seria este uma forma de defesa para o enfrentar? Uma forma comum a todos, enquanto indivíduos da mesma espécie? Serão assim de tal forma parecidos connosco os carrascos, e não seres monstruosos diferentes de nós? Seríamos todos, qualquer um de nós, igualmente capazes de fazer o que eles haviam feito?
nastenka-d
 
 
«Se a verdade daquilo que dizemos é aquilo que fazemos, então bem podemos deixar de falar.»

leitora
 
 
"...via-a sempre de costas. Via a sua cabeça, a sua nuca, os seus ombros. Lia a sua cabeça, a sua nuca, os seus ombros.
...
Estava sentada, como que petrificada.
...
Lembrava-me então de como havia soprado levemente os cabelos dessa nuca e como havia beijado aquele sinal e aquela nuca. Mas a recordação era apenas um registo. Não sentia nada.
Não senti nada durante as semanas que durou o processo, tinha os sentimentos como que embotados.
...
em todos os outros aspectos também me sentia fora de mim. Observava-me, observava-me na Universidade, nas minhas relações com os meus pais e irmãos, com os amigos; mas, por dentro, não me sentia envolvido."


Estas duas palavras por dentro são reveladoras.


Troti



 
 
Quem me havia anestesiado? Eu a mim próprio, porque não teria aguentado aquilo sem um certo grau de embotamento? A anestesia também me acompanhava para fora da sala de audiências, e sugeria-me que era outra pessoa que tinha amado e desejado Hanna, outra pessoa que eu conhecia bem, mas que não era eu.

nastenka-d
 
sábado, agosto 07, 2004
 
«Apontar o dedo aos culpados não nos liberta da nossa culpa. Mas torna o sofrimento mais suportável. Transforma esse sofrimento passivo em energia, actividade, agressão.»

leitora
 
 
"Os nossos pais haviam desempenhado papéis muito diferentes durante o III Reich.
...
O meu pai não queria falar sobre si próprio. Mas eu sabia que ele perdera o lugar de docente de Filosofia por causa de uma aula sobre Espinosa, e que durante a guerra nos sustentara como leitor de editora de mapas e de livros para caminhantes. Como é que pude achar que tinha o direito de o condenar à vergonha eterna? Mas fi-lo. Todos condenámos os nossos pais à vergonha eterna, ainda que só os pudéssemos acusar de terem tolerado, depois de 1945, a companhia dos assassinos."


Troti
 
  O que muda não é a qualidade nem o sentimento, mas a intensidade
Assustei-me. Apercebi-me de que achava a prisão de Hanna natural e certa. Não por causa da acusação, da gravidade do delito e do peso da suspeita, da qual ainda não sabia nada ao certo, mas sim porque enquanto estivesse presa estaria fora do meu mundo, fora da minha vida. Queria tê-la muito longe de mim, tão inacessível que pudesse continuar a ser apenas a recordação em que se havia tornado durante os últimos anos.

nastenka-d
 
 
Reconheci-a, mas não senti nada. Não senti nada.

nastenka-d
 
sexta-feira, agosto 06, 2004
 
...mas durante aqueles meses de Inverno tive a agradável sensação de pertencer a um grupo e de estar em paz comigo mesmo, com aquilo que fazia e com quem o fazia.

Aquilo que fazia, não o esqueçamos, era acusar a geração dos seus pais pela participação no crime monstruoso do Holocausto.
Como se, ao acusar outros, pudesse retirar de si mesmo a dúvida.

nastenka-d
 
 
Penso agora que o entusiasmo com que descobríamos os horrores do passado e os queríamos divulgar era de facto repulsivo.

nastenka-d
 
 
Quem estava a ser julgada naquele tribunal era a geração que se serviu dos guardas e dos esbirros, ou que não os impediu, ou que pelo menos não os marginalizou como deveria ter feito depois de 1945.

Há uns anos atrás, surgiu um livro que apontava a culpa colectiva de toda a nação alemã no Holocausto. Foi uma tese polémica, que dizia que nunca o Holocausto teria sido possível sem a cumplicidade, pelo menos sem a indiferença, mas de qualquer forma sem a culpa, de todo um povo. Não consigo imaginar o que seja viver sobre uma tal dúvida, não só enquanto povo, mas enquanto indivíduo. Poderia ter feito algo de diferente? Os meus pais poderiam ter feito algo? O quê? Serão culpados? E, se assim é, o que é que isso faz de mim? Serei culpada?
nastenka-d
 
 
«Mas despertar de um pesadelo nem sempre significa alívio. Pode mesmo acontecer que, ao despertarmos, nos apercebamos de quão terrível era o que se sonhou, de que o sonho nos revelou uma pavorosa verdade.»

leitora
 
  O que é a justiça?
É o que está escrito nos códigos, ou aquilo que é verdadeiramente aplicado e seguido na sociedade? Ou a justiça é aquilo que, independentemente de estar ou não estar escrito nos livros, deveria ser aplicado e seguido se todos fizéssemos o que está certo?

nastenka-d
 
 
"Voltei a ver a Hanna na sala do tribunal."
...
Revisão! Reviver o passado! Nós, os estudantes do seminário, víamo-nos como os pioneiros da revisão do passado. Queríamos abrir as janelas, deixar entrar o ar, o vento que finalmente faria redemoinhar o pó que a sociedade deixara acumular sobre os horrores do passado. Iríamos zelar para que se pudesse respirar e ver."


Troti
 
quinta-feira, agosto 05, 2004
 
"Depois de a Hanna ter partido, demorou um certo tempo até eu deixar de a procurar com os olhos por todo o lado, até me ter habituado a que as tardes tivessem perdido a forma, até voltar a olhar e abrir um livro sem me perguntar se seria apropriado para ser lido em voz alta.
...
Também me lembro das aulas em que só sonhava com ela, em que só pensava nela.
...
mas a partir de certo momento a sua recordação parou de me acompanhar para todo o lado.
...
fazer amizades...não me custou muito. Tudo me era fácil, tudo era ligeiro.
Talvez por essa razão o pacotinho das recordações seja tão leve. Ou será apenas que o considero leve? Pergunto-me igualmente se todas aquelas recordações felizes são verdadeiras. Quando penso um pouco mais nesse tempo, começo a recordar bastantes episódios repletos de dor e de vergonha. Sei que consegui despedir-me da recordação da Hanna, mas nunca ultrapassei esse facto. Depois dela, nunca mais me deixaria humilhar nem humilharia ninguém; nunca faria alguém sentir-se culpado, nem me fariam sentir culpado; nunca mais amaria tanto alguém que me fizesse sofrer tanto a sua perda: nesse tempo, não pensava em tudo isto com clareza, mas com toda a certeza que o sentia."


Troti
 
 
«Porque é que a felicidade só é verdadeira quando o é para sempre?»

leitora
 
 
Esta parceria entre frieza e sensibilidade parecia-me bastante suspeita, até para mim próprio.

nastenka-d
 
  O pacote leve das recordações
Mas a partir de um certo momento a sua recordação parou de me acompanhar para todo o lado. Ficou para trás, como fica uma cidade quando o comboio parte. Ela está lá, algures atrás das nossas costas, e poder-se-ia apanhar outro comboio, voltar lá e assegurarmo-nos disso. Mas para quê?

nastenka-d
 
  Just Reality (2)
É uma das imagens que me ficaram de Hanna. Memorizei-as, consigo projectá-las numa tela interior e olhá-las, imutáveis, sem desgaste. Por vezes não penso nelas por muito tempo. Mas acabam sempre por me voltar ao pensamento, e pode então acontecer ter de as projectar repetidamente umas atrás das outras na minha tela interior, e ter de as olhar.

Quando li a frase recordei-me imediatamente da instalação de que tinha falado no início desta leitura. Talvez pela forma como as imagens se sucediam, presas por um fio condutor nem sempre perceptível para quem as olha de fora, como acontece com as nossas memórias; talvez pelo seu carácter intimista, que reforça ainda mais esta ideia; ou talvez pela sua forma circular, repetindo-se e sucedendo-se a si mesmas.

nastenka-d
 
 
"-Talvez consiga falar sobre isso um dia.
Mas esse dia nunca chegou."


Troti
 
 
"...arreliava-me a sua má disposição, e apeteceu-me estar longe, na piscina, com os colegas de turma, com a ligeireza das nossas conversas, gracejos, jogos e namoricos. Também eu reagi com má disposição, e acabamos por discutir. Então, a Hanna adoptou novamente a táctica de me ignorar. Voltou o medo de a perder e humilhei-me e pedi-lhe que me desculpasse até que se dignou aceitar-me. Mas sentia-me cheio de rancor.

Foi quando comecei a atraiçoá-la.
Não que tivesse evelado os seus segredos ou a tivesse comprometido. Não contei nada que devesse ter calado. Pelo contrário, calei o que deveria ter contado. Soneguei a Hanna. Sei que sonegar alguém é uma variação discreta de traição. Por fora, não é possível ver se se está a sonegar alguém, ou apenas a usar de discrição, a ser respeitador, a evitar situações delicadas e aborrecimentos. Mas aquele que sonega sabe muito bem o que está a fazer. E do mesmo modo, o sonegar é tão grave numa relação como outras formas mais espectaculares de traição.
...
Dizia para mim mesmo que, se falasse agora sobre ela, iria despertar uma impressãio errada; eu havia calado durante tanto tempo a nossa relação que os outros pensariam que era porque me envergonhava de Hanna e por ter a consciência pesada. Mas eu sabia que estava a iludir-me, sabia que a atraiçoava ao fingir que contava aos amigos tudo o que era importante na minha vida, e sonegava a Hanna.
Eles apercebiam-se de que eu não era totalmente sincero, o que não melhorava a situação.
...
- O motivo por que chego mais tarde ou me vou embora mais cedo é outro.
- Não queres falar sobre isso, ou queres falar mas não sabes como?
Não queria, ou não sabia como? Eu próprio não o sabia dizer."


Michael Berg tem 15 anos, Hanna Schmitz tem 36.


Troti
 
 
"Quando nos amámos, tiva a sensação de que queria dar-me sensações nunca antes sentidas, até que não pudesse aguentar mais. Também ela se deu como nunca se dera antes. Nunca deixou de se contar, nunca deixou de ter reservas. Mas foi como se quisesse afogar-se comigo."


Troti
 
 
"Quando os motores dos aviões param por avaria, isso não é o fim do voo. Os aviões não caem do céu como pedras. Os enormes aviões de passageiros, com vários motores, continuam a deslizar durante meia hora ou três quartos de hora para depois se esmagarem ao tentarem aterrar. Os passageiros não notam nada. Voar com os motores parados não parece diferente de voar com eles a funcionar. É mais silencioso, as só um pouco mais silencioso: mais barulhento que os motores é o vento que se quebra na fuselagem e nas asas. Num momento qualquer, ao olhar pela janela, a terra ou o mar estão ameaçadoramente próximos, a não ser que as hospedeiras e os hospedeiros tenham fechado as cortinas para pôr um filme a correr. Talvez os passageiros sintam que esse voo, um pouco mais silencioso, é especialmente agradável.
Aquele verão foi o voo planado do nosso amor. Ou melhor, do meu amor pela Hanna; não sei nada sobre o amor dela por mim."

Troti
 
 
"Encontrava-me no mundo como se ele não me pertencesse e como se eu não lhe pertencesse."


Troti
 
quarta-feira, agosto 04, 2004
 
«Pode ser que a verdadeira vida esteja a acontecer algures, noutro sítio.»

leitora
 
 
"Ela era normalmente muito clara; as coisas, ou lhe pareciam bem ou lhe pareciam mal."


Troti
 
 
Sei que sonegar alguém é uma variação discreta da traição.

nastenka-d
 
 
"Falei acerca dos poemas de Homero, dos discursos de Cícero e contei-lhe a história de Hemingway sobre o velho e a sua luta com o peixe e com o mar. Ela queria ouvir como soavam o latim e o grego, e fiz-lhe leituras de A Odisseia e das Catilinárias.
...
- Lê-me em voz alta!
- Lê tu mesma, eu trago-tos.
- Tens uma voz tão bonita, miúdo, gosto mais de te ouvir ler do que ser eu própria a ler.
- Ora, não sei.
Mas quando cheguei no dia seguinte e quis beijá-la, desviou a cara.
- Primeiro, tens de ler em voz alta.
Estava a falar a sério.
...
Ela era uma ouvinte atenta."


Troti
 
 
"O seu olhar tocava tudo...
...
Ela deixou vaguear o olhar pelas estantes que forravam as paredes, como se lesse um texto. Depois dirigiu-se para uma estante, passou lentamente o indicador da mão direita, à altura do peito, pelas lombadas dos livros, foi para a outra estante, continuou a passar o dedo, lombada a lombada, e percorreu toda a divisão. Ficou parada à janela, olhou para a escuridão, para o reflexo das estantes e para o seu reflexo."

Nós não sabemos a verdade de Hanna neste momento do livro, mas compreendemos mais tarde toda a sua carga emotiva.


Troti
 
  Por vezes tinha a sensação de que ela só queria impor-se. Mas, de qualquer maneira, eu não tinha escolha.
É com esta frase (mas com toda a violência que ela descreve, violência exercida gratuitamente) que se dão a conhecer, de forma mais evidente, os traços dissonantes do carácter de Hanna. (Ou talvez eu os leia já contaminada por tudo o que sei do livro.) São como que sinais, pré-avisos, da sua capacidade de exercer uma forma de poder monstruosa. (Mas, penso, para se comportar assim não é necessário ter sido guarda de um campo de concentração; embora o inverso me pareça mais verdadeiro.)

nastenka-d
 
 
"A discussão tornou a nossa relação mais íntima. Eu tinha-a visto chorar, a Hanna que chorava era-me mais próxima do que a Hanna que apenas era forte. Comaçou a mostrar um lado mais doce, que eu desconhecia.
...
Comecámos a amar-nos de outra maneira.
...
começamos a amar-nos de uma maneira que ultrapassava a simples posse um do outro."


A capacidade de chorar em frente ao outro, o despir a máscara e assumir uma fraqueza própria de qualquer ser humano, tece laços e deixa marcas.


Troti
 
terça-feira, agosto 03, 2004
 
"Não conseguia desviar dela o olhar. Das suas costas e dos seus ombros, dos seus peitos, que a combinação realçava mais do que escondia, das suas nádegas, que repuxavam a combinação quando ela apoiava o pé no joelho e o colocava na cadeira, da sua perna, primeiro nua e pálida e depois, dentro da meia, envolvida pelo brilho sedoso.
Ela sentiu o meu olhar. Deteve-se no momento de ir buscar a outra meia, voltou-se para a porta e olhou-me nos olhos. Não sei o que havia no seu olhar; admiração,inquirição, saber, desaprovação. Corei. Fiquei parado por um instante e com a cara afogueada. Depois não consegui aguentar mais, precipitei-me para fora da casa, corri pelas escadas e saí do prédio.
...
Anos mais tarde, apercebi-me de que não tinha conseguido desviar o olhar não só por causa do seu corpo mas pelas suas posições e movimentos.
...
uma sedução que não é seios e nádegas e pernas, mas sim o convite para esquecer o mundo dentro do corpo."


Troti
 
 
"Sobre a minha memória do seu rosto de então foram-se depositando, com o passar dos anos, os seus outros rostos. Quando a tenho diante dos olhos como ela era então, vejo-a sem rosto. Tenho de o reconstruir...Um rosto largo, áspero, de mulher adulta. Sei que era bonito. Mas não consigo lembrar-me da sua beleza."


Troti
 
 
Mas a acção não decorre só do que foi pensado e decidido antes. Surge de uma fonte própria, e é tão independente como o meu pensamento e as minhas decisões.

nastenka-d
 
 
...converti o meu desejo num estranho factor de raro cálculo moral e assim calei a minha pesada consciência.

nastenka-d
 
 
Se o olhar ávido era tão mau como o acto de satisfação do desejo, e a fantasia activa tanto como o feito em si mesmo, então porquê negar-se a satisfação e o acto?

nastenka-d
 
 
Via tudo novamente diante de mim e, uma vez mais, não conseguia desviar os olhos.

nastenka-d
 
  Seduzir
Parecia, sobretudo, que se recolhera no interior do seu corpo, que o entregara a si mesmo e ao seu próprio ritmo pausado, indiferente a alguma ordem do cérebro, e que esquecera o mundo exterior. Foi esse mesmo esquecimento do mundo que eu vi na atitude e nos movimentos ao calçar as meias. Mas nisso não era rude, tinha gestos fluídos, graciosos, sedutores; uma sedução que não é seios e nádegas e pernas, mas sim o convite para esquecer o mundo dentro do corpo.

nastenka-d
 
 
"Ter-me-ei apaixonado por ela como prémio por ter aceite dormir comigo?"


Troti
 
 
"Quando era novo, sentia-me sempre demasiado confiante ou demasiado inseguro. Ou achava que era um ser totalmente incapaz, insignificante e inútil, ou acreditava que era um ser sobredotado, a quem tudo saía obrigatoriamente bem. Quando sentia seguro, ultrapassava as maiores dificuldades. Mas bastava o mais pequeno fracasso para me convencer da minha inutilidade. recuperar da segurança nunca era resultado do sucesso; todo o sucesso ficava lastimavelmente muito aquém de tudo o que esperav do meu rendimento e esperava sempre que os outros me reconhecessem. E, dependendo do modo como me sentia, assim o meu sucesso me dava orgulho ou me parecia insuficiente. Com a Hanna, senti-me bem durante semanas - apesar das nossas discussões, apesar de ela me evitar e de me humilhar repetidamente."


Troti
 
  A problemática do diálogo
Entre Michael e Hanna não há diálogo franco. As intenções concretizam-se na incompreensão e na dúvida...

"Ia a dizer. "Amo-te". Mas depois mudei de ideias.
...
Eu não compreendia a situação. Se o meu trabalho era estúpido, o seu era extremamente estúpido - teria ficado ofendida com isto? Mas eu nem sequer tinha dito que o meu trabalho, ou o dela, eram estúpidos. Ou será que ela não queria um falhado como amante? Mas será que eu era amante dela? O que é que eu significava para ela? ...esperei que dissesse qualquer coisa. Mas ela não disse nada..."


..............




"Não é justo, Hanna. Tu sabias, tu tinhas de saber que eu só apanhei o eléctrico por tua causa. Como é que podes acreditar que não queria reconhecer-te? Se não quisesse reconhecer-te, não teria apanhado o eléctrico.
...
Ela tinha-me tratado mal, e eu tinha ido pedir-lhe explicações. Mas nem sequer conseguira começar a explicar-me. Em vez disso, era ela que me atacava. E comecei a ficar inseguro. Talvez ela tivesse razão, não objectiva mas subjectivamente. Será que ela me interpretara mal? Tê-la-ia magoado, ainda que sem intenção; ou, antes pelo contrário, tê-la-ia realmente magoado?
...
E eu não tinha apenas perdido essa discussão. Rendera-me após uma breve luta, quando ela ameaçou repelir-me, privar-me dela. Nas semanas seguintes, nem sequer fiz menção de lutar....Assumia todas as culpas. Confessei erros que não tinha cometido, assumi intenções que nunca tivera. Quando ela se tornava fria e dura, suplicava que voltasse a ser boa para mim, que me perdoasse, que me amasse. Tinha por vezes a sensação de que ela própria sofria com a sua frieza e dureza. Como se ansiasse pelo calor das minhas desculpas, protestos e suplicas. Por vezes tinha a sensação de que ela só queria impor-se. Mas, de qualquer maneira, eu não tinha escolha.
Não conseguia falar com ela acerca disso. Falar das nossas discussões só levava a novas discussões. Uma ou duas vezes excrevi-lhe longas cartas. Mas ela não reagia, e quando lhe perguntava se as tinha lido, ela replicava:
- Já começas outra vez?"


..............


"A única discussão, tivemo-la em Amorbach. Acordei muito cedo, vesti-me em silêncio e sái furtivamente do quarto. Queria trazer o pequeno-almoço para cima e procurar uma florista aberta a comprar-lhe uma rosa. Deixara-lhe um bilhete na mesinha de cabeceira....Ao regressar, ela estava em pé no quarto...a tremer de raiva...
- Como é que pudeste ir simplesmente embora sem dizeres nada!
...
Ela tinha na mão o delgaso cinto de couro com que cingia o vestido, deu um passo atrás e fê-lo correr na minha cara. O meu lábio rebentou e senti um sabor a sangue...Eu estava muitíssimo assustado...Ela estava ali em pé e olhava-me por entre as lágrimas.
Deveria tê-la abraçado. Mas não conseguia. Não sabia o que fazer. Em minha casa não se chorava assim. Não se batia, nem com a mão e nunca com um cinto de couro. Falava-se. Mas o que deveria eu dizer?


A falta de comunicação franca entre dois seres humanos tem, nesta trama, um papel crucial.


Troti

 

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